O sol da primavera ilumina o monitor pelas frestas da veneziana. O ar é gelado, porém primaveril. Uma certa sensação começa a subir pelo corpo e cobre o rosto de calor. Vontade imensa de sair correndo para o parque do ibirapuera. No fone, Bush. A música vem com a velocidade da brisa: Letting the cables sleep. O estômago traz a agonia dos vocais e as pernas entram em conflito com a mente que precisa, desesperadamente, entregar tudo no prazo. Hoje não tem trégua. A emoção sobe pelas veias e derrama aquela angústia frenética e sensivelmente explosiva. Pólvora nos olhos. Na boca umas letras misturadas com café forte. Na pele o arrepio constante. Volúpia. Há tempos não sentia o nó esganado na garganta, de quem quer se libertar das amarras da consciência. É tudo comedido; essa mecanização, esse foco. Disfarces para a inquietude, para a dispersão constante. Expiração da mente inundada por você e uns sonhos que não tenho dinheiro para comprar. Silêncio não é o caminho, ele diz na música. Séria constatação. Vê, eu não tenho saída. Minha covardia e o orgulho transbordam pelos olhos e eu sento na beira do cais com os pés balançando n'água. Mas a música me acalma. E acende a percepção. Um animal arisco e farejador, com seu instinto apurado e suas defesas violentas na terra presa nas patas. O coração que não pára de socar o peito, que nunca vai cessar. Eu sou essa mutação cortante e o veneno súbito que penetra na corrente sangüínea. Não há meios de conter. Eu não vou parar de viver. Eu me purifico e me salvo pela dor. Depois, volto pra casa com as botas gastas e é só.
A arte de colher pedras preciosas
Às vezes precisamos de pessoas assim, que nos façam sentir a frescura do ar e o perfume das flores. De meninas tão leves e doces que venham com pedrinhas nas mãos - dizendo ser preciosas. De um chocalho, umas penas, alegrias e tendas. De colares, colores, olhares, manjares. Eu vi a luz hoje e me encantei como antes. Eu vi o azul da saia e a vida em avenidas e esquinas. Eu vi hoje a placa na rua que dizia "precisa-se de felicidade". E eu não escolhi o caminho da saudade. Nos pés, os chinelos batidos com pedrinhas brilhantes. Na bolsa, toda esperança querendo saltar pelas bordas. Eu vi o verde e meus olhos sentiram a falta da mãe. Do sal d'água que fica na pele e do sol queimando os cabelos na praia aberta. Sinto falta da saia rodada e dos panos enrolados no corpo. Sinto falta d'água na pele e o refresco d'alma. Veio o verão e já era tarde o pó de gelo abandonou os vidros da janela do quarto. Quero meu copo de gelo, com limão por favor.
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