São 30 anos sem você. É inexplicável sentir 30 anos de dor por alguém com quem convivi apenas 10 anos da minha vida em uma fase da qual mal posso me lembrar das coisas que vivi.

É curioso que eu não dê importância para retratos e o seu comigo seja o único exposto na minha sala. A ausência mais dolorosa, a saudade mais asfixiante, o choro mais sentido, soluçado, o mais visceral.

Eu não quero acreditar no que diz o mundo: que é uma ferida infantil, que eu não tenho como dimensionar as coisas como realmente eram para comparar com o hoje, porque era uma criança e as lembranças não são confiáveis.

Eu não posso acreditar nisso, simplesmente, porque essa é uma das raras verdades para mim. Ninguém pode me tirar isso. Ninguém tem esse direito. Eu, que já não tenho nada, não é justo que não possa cultivar esse jardim de flores mortas.

Será que também é por isso que essa época de fim de ano fico sempre na bad de uma forma que parece inexplicavelmente desproporcional aos eventos?

São muitas coisas concretas que me deixam mal no final do ano, mas há sempre uma tristeza existencial profunda de onde verte sangue, pus, lágrimas, veneno... é como um refluxo no qual me afogo e por pouco não me deixam morrer em caos. Será que atravessar esse caos é onde tem paz? Será que a paz é só o que há depois do fim - o nada, a inexistência?

Eu acreditava em vida após a morte quando era jovem. Uma crença que quem ousa ter morre de medo de não ser verdade. Hoje eu tenho medo que me provem isso, torço para a morte ser um fim, pra não ter bônus após os créditos.

Não almejo encontrar ninguém que se foi. Não acredito que haveria reencontro e relacionamento possíveis do ponto em que houve interrupção. Porque foi. Acabou. E isso eu aceito. Quem não aceita, não bate bem.

O que me corrói é a saudade, é a tristeza da ausência. Isso, ah, isso não tem solução. O que me resta é sentir e vivenciar essa falta da forma mais concreta possível - chorando em posição fetal, com o coração estrangulado até sentir uma dor aguda nos meus músculos e tomar ar para não desmaiar.

Eu não aguento mais. Eu não sei como cheguei até os 40. Eu nao aguentaria metade do que você aguentou até os 99. Eu não sei como você fez isso. Eu não sei... Não consigo imaginar e isso te eleva a uma posição sobre-humana, à posição de herói. E isso me dilacera mais ainda, porque tudo que eu queria era um herói. Alguém pra me salvar de tudo isso. Alguém pra me abraçar e me dizer que vai ficar tudo bem, mas me ajudar a fazer ficar tudo bem.

Sem nem perceber, tava lá, no meu computador, uma playlist de trilha sonora super animada e a voz do Layne. 3 dias sem Internet e só tinha salvo, basicamente, Mad Season. O Lu perguntou se já tinha começado a temporada de natal, que é quando eu fico deprê e ouço Alice in Chains. Sem perceber, todo ano é assim. É a voz do Layne, que morreu cedo, que me acompanha com sua angústia vocal que revela tanto a minha vital.

É a sua falta, é o humor ácido da vida que me fez batizar esse blog com algo que desde criança eu me relaciono de forma intencional, espiritual, devocional, o vulgarmente chamado terceiro olho. Era ele o tempo todo, um bloqueio monumental, um orifício simbólico por onde escorre a minha vida. Que ironia...

É a habilidade para ser eficiente - quando meu ser tem menos condições do que a maioria - que bebe cada gota do meu sangue e, quando desmorono, sou cobrada igualmente, sem desconto, por algo que na maior parte do tempo entreguei acima da média, mesmo tendo condições abaixo da média.

A vida não pode ser inteira só peso. E aquele alento, aquele amor, aquela alegria? Era tudo ficção, fantasia passageira? Nunca entendi a frase "o que não tem solução, solucionado está". A mim sempre pareceu que revela uma conformidade com a miséria. Uma miséria que transcende a capacidade humana de sustentar a vida sob determinadas condições.

O fim do ano é o inferno que atravesso há 40 anos. Não porque o ano acaba. Não porque eu imputo algum significado especial ao fim do ano. Mas porque foi nessa época que você se foi. Porque foi nessa época que ficamos desabrigados, perdidos, desesperados, sem teto nem teta. Sem a principal fonte de manutenção da vida. E é mais irônico ainda que a maior e mais importante figura de resgate que nos abandonou seja uma das minhas maiores saudades. Me senti traída pela vida, pela fonte da vida. Mas como me revoltar com a fonte? Será por isso essa pulsão de morte? Algo tão considerado antinatural, provém de uma desilusão, um acontecimento igualmente antinatural. Como uma mãe nega auxílio a um filho? É cruel que essa atrocidade atravesse gerações e marque a ferro e fogo na carne esse sofrimento. O que me cinsola é que daqui pra frente não vai, levo comigo para a paz que um dia serei.

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