Normose

Ponto; parágrafo.

É assim que começo essa nova fase. O clichê da minha vida "cansei dessa porra toda" é o mote. Nas eleições sentimentais o medo que lute concorrendo com o desapego e a coragem. Eu já tenho meus candidatos e boto fé, ciência, ebó, banho de erva, benzimento, tecelagem, gana e o que mais tiver dentro das minhas possibilidades pra essa eleição dar vitória pra luz e fora satã.

Se não cair, a gente derruba. Ponto.

Parágrafo.

Sobrevivi a muitas coisas. Tenho vários danos físicos e emocionais por isso. Sim. Quando revelo que também tenho problemas e alguém me aborda incrédulo compreendo que: 1) essa pessoa age com base em seus pré-julgamentos; 2) eu devo dar motivo ao não deixar transparecer "essa tal humanidade" e corroborar vestindo a máscara da boa moça que tá sempre otimista. Positividade tóxica, né, caro leitor? Eu juro que luto pra não praticar, mas acontece.

Hoje, por exemplo, um médico, cardiologista, me deu um monte de broncas e insistiu que preciso de um psiquiatra. Ele não me ouviu, quando cheguei e proferi meia dúzia de palavras buscando expor minhas elucubrações acerca das reações que o MEU corpo estava produzindo, e já disparou essa. Nem ouviu meu histórico de saúde (que não estava no prontuário), mas estava cheio de certezas. Um perigo! Gente cheia de certeza me causa espanto e revolta.

Porque ele tem "mais de 20 anos de experiência" e blablablá "você precisa de psiquiatra". "Ok, doutor, mas, veja bem, com todo respeito, o senhor manja de anatomia e estudou e tem toda essa experiência, mas eu conheço o MEU corpo."

O problema é gente que chega no médico com dados a respeito de si, como "eu estava dormindo de boa, tendo um sonho legal, daí acordo com o coração acelerado sem mais, 123 bpm!" ou "minha pressão chegou a 15 por 9 e momentos antes eu tava de boinha vendo um filme, a única coisa diferente foi esse remédio que comecei há 3 dias; coincide com essas paradas estranhas, o senhor não acha?". 

Ele me perguntou quantas vezes por dia eu media a pressão, já naquela insinuação de que eu era uma hipocondríaca, afinal, por que uma pessoa com 38 anos tem um aparelho de medir pressão em casa, pra começar, não é mesmo? Não deve bater bem das bolas, óbvio.

Acontece que um médico me sugeriu comprar e medir, caso eu tivesse picos altos, porque em algumas fases da vida, por estresse (ou não bater bem das bolas, como preferir) eu tive pressão alta. "Eu medi só ontem à noite, doutor, depois de 3 dias passando mal, comecei a observar e... dor na nuca, pontos brilhantes na visão, coração acelerado enquanto durmo e outros, desconfiei. Bingo, tava com a pressão nas alturas!"

Mas o que ele queria era motivo pra me declarar apta ao atendimento psiquiátrico. Questionei outra coisa e ele disse que eu tava viajando. Expliquei que foi uma enfermeira que me orientou a falar a respeito com um médico e ele me respondeu: "você por acaso viu algum médico falando isso???"; "vi sim, doutor, uma endocrino". Inconformado: "Mas você viu o ministério da saúde falar sobre isso?". Sem comentários...

Gente cheia de si é um perigo. Gente que acha que diploma é aval pra deidade e que quanto mais os anos passam mais certa está. Experiência não é sobre estar certo e cuspir na cara dos outros que da altura de sua jornada você sabe, assina e autentica. Experiência é ter humildade para rever tudo que foi aprendido e praticado e questionar até mesmo isso. É movimento, exercício constante. É ouvir o outro. Simples assim. E a partir daí, no caso do médico, examinar o paciente considerando a ciência, a prática e o indivíduo.

Ele não tinha resposta para minha pergunta e nem competência (no melhor sentido possível) para avaliar meu caso, então, na tentativa de fazer algo (porque vamos combinar que ele não me deixaria sair de lá sem um carimbo de "solucionado", fere o brio do profissional experiente), queria motivos para justificar minha habilitação ao tratamento psiquiátrico (lógico, porque tomar um comprimido ou uma porção deles vai resolver tudo na minha vida, vide João e o pé de feijão), afinal, eu dava claros sinais de que estava desequilibrada:

  • Chorei duas vezes na frente dele durante a consulta;
    Não importa se você é uma pessoa sensível, com problemas que te afligem, que está sendo violentada pela conduta médica boçal; não importa se é bem resolvida para demonstrar seus sentimentos e chorar na frente de estranhos, porque você deve é se comportar de maneira "normal", gente "normal" não chora em público, engole o choro e faz a bonita. Inclusive vai pro médico com a melhor lingerie e nada de meia furada pra caso seja examinada. (você precisava ver a minha cara escrevendo tudo isso...)

  • Não durmo direito há meses;
    A baixa hormonal que ocasionou inúmeros problemas, incluindo osteoporose - que me levou a uma grave fratura no pulso após só escorregar limpando chão; o fato de ter ficado extremamente doente de diversas formas e inclusive ter pego covid, apesar de me desdobrar em cuidados de saúde; o estresse, porque no meio de tudo isso meu marido e meus cachorros também adoeceram e demandaram cuidados; e tudo isso no meio de uma pandemia com a economia ferrada, tentando sobreviver, com o demônio na presidência: "não tem nada a ver com isso; vá ao psiquiatra, você está ansiosa, e talvez desenvolvendo síndrome do pânico, já ouviu falar?" 

Porra, se eu ouvi falar? Eu lutei 3 anos pra me "curar" disso. A não ser que meu organismo tenha "criado resistência" e desenvolvido outras formas para me acometer novamente com isso, eu tenho ansiedade, sim!!! Afinal, sou um ser humano com problemas, segurando uma barra, se não sentisse ansiedade e inseguranças talvez fosse o que, uma psicopata? Sei lá... até uma alface sente algo e isso não é problema. Sentir não é problema. Mas o sentir é medicalizado o tempo todo. E é o velho clichê do "eu não sou louca", enquanto arrastam a pessoa atada na camisa de força e injetam um sossega leão via intravenosa. Não há meio de essa pessoa ser ouvida. Não existe espaço para a escuta, só para a medicalização. Qualquer coisa que você disser será usada contra você. Só abre a boca pra tomar esse comprimido.

Perguntou se eu já passei com psiquiatra: "sim senhor, em 2017 ou 2018. "E ele te deu alta ou você simplesmente deixou de ir às consultas?". Apesar da pergunta capciosa, respondi calmamente que recebi alta - "esse psiquiatra deve ser mole, senão não te dava alta. Vou te recomendar um bom psiquiatra.".

Isso porque ele não deu chance de eu contar nem 10% dos problemas que estão rolando. Até porque pra eu abrir esse canal de fala só mesmo um psiquiatra para ouvir - e oferecer uma pílula mágica. Cardiologista ouve é coração. Que piada infame.

Aquilo que desconhecemos assusta. E quase sempre estamos armados para afugentar a "ameaça" antes mesmo que ela possa se apresentar.

Gente curada demais é chata, dizem. Gente consciente demais é ameaça: revela a ignorância de forma brutal e isso é inconcebível, passível de medicalização para levá-la a um estado pariforme, "normal", dócil, vegetal. Normose. Não podemos incomodar os que dormem. Nós que lutemos para lidar com nossas agruras por trás das máscaras.

Não mesmo!


Imagem: Filme "Quero Ser John Malkovich" (1999)




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