Passou a catraca como se não houvesse obstáculo. Mirou mais uma vez as inscrições de Pessoa no muro do saguão. Sentiu vontade de tocar pra sentir que era mesmo real. Sacou o maço de cigarros da bolsa, engatou na boca e aguardou a escada rolante subir. Acendeu o isqueiro-coração em brasa. Tragou. A primeira baforada é sempre a melhor. Uma sensação de alívio, liberdade dos pensamentos, do peso do dia inteiro. 22h09.

Chegou à parada de ônibus e estacou. Vagando apenas o pensar com a fumaça que evolava. 22h11. Do fundo, de onde ela veio, ele surgia. Parecia um moleque, mas quando se aproximou, arregalou os olhos e reconheceu de imediato. Reconheceram-se. Ela fez charme. Tragou com gosto e soltou pro alto, como quem abre as mãos e liberta um pássaro. O olhar perdido nas brumas frias da noite, num céu escuro. Ele contemplava. Eu sei.

O ônibus ia demorar a sair - anunciou o cobrador. Ele virou de costas e acendeu um cigarro. Fumou com vontade e olhou pra ela. Os dois, cumplices através do cigarro. Eles sabiam. Alto, mais que ela. O rosto harmônico, ossos levemente aparentes nas maçãs. Quase pude sentir, tocar, com as pontas dos dedos. Barba mal feita, argolas nas orelhas. E duas entradas convidativas pr'alma. Aquáticas, líricas, que grudaram nos meus olhos.

Ela atirou a bituca na calçada e apagou com a ponta da bota de couro preta. Lustrosa. Subindo por uma legging negra sobreposta pelo grosso casaco de lã. Atendeu ao telefone, trocou meia dúzias de palavras que tentavam se esticar aos ouvidos dele. Deu as costas e pintou os lábio de vinho-canela. Jogou os cabelos e encarou. Ele seguia com o olhar aquático, marino - ela subindo as escadas na cadência do momento. Sentou.

Ele percorreu os bancos e cruzou com os girassóis em verde-oliva. Fora invadida por uma onda de calor que inflou os pulmões, os ânimos, o coração-pulsante. Considerou que a distância entre ela e o amor era de duas cadeiras. Contentou-se. O reflexo no vidro do ônibus era a melhor paisagem. Uma paisagem inquieta, que titubeou em vislumbrar por cima do ombro. Adele começou Lovesong, do Cure. A melhor, a mais encantadora. Aquela coisa etérea que faz as extremidades formigarem.

Desceu, ela. Próxima parada, ele. E não consigo me lembrar de onde o conheço. Mas foi a melhor viagem dos últimos dois anos.


"Tudo vale a pena se a alma não é pequena"

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